Thursday, November 17, 2005


GATOS PARDOS (2)


Perplexidade



Voltando a sentar-se, a instrutora abre sua pasta de trabalho e sugere:
-- Outros textos, tenho-os à disposição.

Desinteresse!

Exaustos, mas felizes pelo fim do último dos quinze dias de treinamento em sala de aula, os participantes do grupo se entreolham interrogativos.
Mas, aceitam o convite. Afinal, apesar do pouco tempo de convivência, a instrutora Stefhanie mostrara-se convincente nas suas adestrações, sobretudo quando, durante os intervalos das aulas, íntima e inquieta, compartilhava trechos de algumas suas reflexões cotidianas que sonhava ver publicadas em livro.
-- Espero-os, todos, às sete -- continua Mrs. Sthefanie Westborn, renomada cientista social, contratada pela organização à reciclagem dos mais antigos empregados da área financeira da empresa.
-- Cedo demais? Às oito então. Que tal?! Está bem, está bem...- concedeu Sthefanie, diante dos gestos de desconforto
É que... é que, antes de tudo, -- esclarece com humildade --
pretendo apresentar-lhes o meu calhamaço de crônicas. Permitam-me!
Desconfiança!






CAPITULO 1



TEMPO INICIAL


Depois de encher a cara o dia inteiro, ADAM quase não conseguiu subir a escada da porta dos fundos da acanhada meia-água, onde ,às turras, sobrevivia com a mulher EVA.
Erguida à beira da ferrovia, dentro do manguesal, com restos de tijolos doados e costaneiras de pinus arrecadadas em clandestinas investidas noturnas ao pátio da vizinha serraria, a moradia se destacava no meio do verde das folhas do mangue e das siriúvas pelo amarelo pálido de suas paredes entremeadas pela porta e a janela em um azul forte de bordas brancas.
Conheceram-se durante uma festa de aniversário. Fazendeiro de ocasião e notário por profissão, DEUSDHET Silva, personagem ilustre da região e com influência na sociedade local, comemora seu cinqüentenário na ampla casa avarandada do seu sítio serrano, refúgio certo dos prolongados finais de semana e onde, aconselhado pela esposa, distinta mulher de família burguesa, herdeira de vastas áreas de terras, além de maçãs, plantava batatas.
Convidou meio mundo: além do prefeito, do padre , do pastor, do juiz e do promotor, estavam presentes, também, médicos e enfermeiros, estudantes e professores, advogados e escrivães, engenheiros e arquitetos, bancários e banqueiros, procurados e procuradores, muitos peões escravos e os meeiros da plantação.
Rodeada e cortejada, a moça EVA resiste às tentações e não desaponta as rígidas e conservadoras recomendações do pai anfitrião: esnoba todos; menos um, o recém chegado pescador, que lhe apresentam como brilhante e bem sucedido escritor.
-- Encantado, Arthur ! – sorri o impostor.
-- De onde vens? – pergunta a jovem e bela princesa ao descarado interlocutor.
-- Vamos! Amanhã cedo vamos à posse do novo Governador Floriano , meu padrinho de crisma. – responde ADAM, apresentando suas armas.
-- Afilhado do Governador?! – interessou-se a menina, imaginando-se, já casada, no futuro: " Uma bela mansão, jóias preciosas, banquetes..." E pensou: "
Ora, se o filho do Governador foi nomeado diretor, afilhado também... claaaaro"!!
-- Não por acaso. Como imigrantes, nossos bisavós partiram do porto de Hamburgo e chegaram ao sul do Brasil, no final do século passado, no mesmo navio, Terpschore... Daí...
- gaba-se o neo- príncipe, emendando um convite:
-- Dançamos à noite? Que tal ?
Eva disfarça, mas não resiste à sedução.
Apaixonada...apaixonada?!? Mas já?, assim sem mais nem menos?

E por que não?!
Enamorados, dançam, dançam..
Sob a lua cheia,
O céu é perto, apalpam;
Boca à boca, cegam!
A terra não gira,
Mão à mão, suplicam
O fogo não queima,
Teima;
Coxas e coxas, cochas
A chuva não molha.
Acolhe.
Não têm sede nem fome,
Nem frio;
O calor predomina, fecundo.
o sexo dura, pleno.
O choro é gozo,
O sono é curto,
Sonham juntos, intrépidos.
Acordam.
Casados, cansam,... cansam,
O tempo muda, escurece;
Sem lua, a vida é crua,
O céu, cai;
A chuva, irrita.
O fogo abranda,
O sexo, breve, é aturado.
O sono , longo, cansado.
Dormem.

Cansados e desapontados,... o príncipe, se transforma num sapo,
E, à princesa adormecida, antes bela, coaxa:
"-- Vagabunda ! Sem vergonha ! balbuciava ele, sempre, no início da costumeira ladainha de acusações, pendurado à desbotada cortina de chita florida que separava a minúscula cozinha do minguado quarto de dormir, pouco antes de cair à tarimba , desmaiado.
À mesa de cabeceira, redonda e de pernas curtas, o rosário de caapiá, descascado de tanto manuseio, testemunhava as baganas de cigarros que jaziam no assoalho empoeirado; as faturas das contas de luz não pagas, misturavam-se aos rabiscados volantes de apostas lotéricas e aos carbonados papelotes de jogo do bicho sonhados; do outro lado, sobre uma cadeira com calços num dos pés, já quase consumido pelos esfomeados cupins, o calado aparelho de telefone celular pré-pago contrastava com o ruidoso e falante rádio à pilha, alaranjado , seu companheiro fiel durante os intermináveis apagões das madrugadas, quando suportava as dores de cabeça trazidas pela ressaca contraída nos rotineiros porres diurnos, irradiando-lhe notícias sobre o apaixonante mundo do futebol, intercaladas a saudosas canções e repetidas orações reanimadoras :
--" ...
e agora, você ouvinte, que me honra com a sua audiência todas as madrugadas, acompanhe comigo, de onde estiver, em casa ou no trabalho, na cidade ou no campo, de qualquer lugar, a nossa prece inicial:
Oração no desânimo
Meu Deus, a ti eu clamo - dentro de mim há trevas, mas em ti encontro a luz. Estou sozinho, mas tu não me abandonas. Estou desanimado, mas em ti encontro auxilio. Estou inquieto, mas em ti encontro a paz. Dentro de mim há amargura, mas em ti encontro paciência. Não Compreendo teus planos, mas tu conheces o meu caminho."
Essa era a rotina do vaidoso ADAM DE S. FRANCISCO Xavier, homem de meia idade, intrigado com suspeita de infidelidade conjugal, derrotado pelo desemprego, persistente, e fulminado pelo excesso de consumo de cachaça, inebriante.

Wednesday, November 16, 2005







GATOS PARDOS (1)

Anoitece
A mulher sentou-se.
Breve silêncio.
Somente alguns derradeiros raios pálidos do sol poente de outono penetravam pelo vão superior da única janela da sala de treinamento do subsolo do moderno e solitário prédio cercado pelo antigo casario da praça central do vilarejo . Muito embora insuficiente para, ao menos, amenizar o odor exalado pelo mofo que tomava conta do desgastado carpete acizentado que forrava o piso do ambiente, todavia aquele feixe inclinado de luz, além de realçar o tom amarelado da elegante blusa de lã de Stephanie, indicava também o término de outro longo e estressante dia de aula; enfim, o último deles!
Bocejos.
Conectada à internet , a instrutora Stephanie cruza suas longas pernas, disfarçadamente à mostra sob uma saia de cor marrom, curta e justa. Ajeita, no rosto ovalado de testa curta, olhos de cor castanho-esverdeado, grandes, encimados por sobrancelhas grossas, nariz médio angular, queixo miúdo, de pele clara e acetinada, resultado das perseverantes sessões rejuvenesceras e de cremes importados, os óculos de leitura, denunciantes dos quarenta anos, que ela insistia em esconder, sobretudo, no louro ondulado do longo cabelo. Acessa seu endereço eletrônico e, enquanto com a voz suave e delicados meneios de cabeça, encadeia uma série de perguntas ao seu público, toma conhecimento das notícias da correspondência recebida:
-- Entenderam então...?? - diz aos ouvintes, cansada, mirando o monitor do microcomputador, clicando na primeira mensagem.
(" from Annie: Tio Frederico morreu às 05:30 da madrugada; o enterro será amanhã às 9. Beijos" ) Coitada da titia, descansou ! – fala para si mesma
--...a diferença entre o indivíduo bem sucedido e o...e ...com sucesso? E os nossos pontos fortes e fracos,...
( "Mensagem 2 - from Johan: Precisamos de sua ajuda urgente. Nosso irmão Peter percebeu a traição da tua cunhada, aquela.... – abraço do Joe ) Continua a crítica silenciosa aos textos: Eu sabia que aquela sujeita continuaria a... deixa prá lá, coisas da natureza humana, necessidade biológica; o culpado disso tudo é ele mesmo; devia...
Volta aos alunos:
--...quais critérios utilizamos para identificá-los? Os fracos devem ser esquecidos priorizando-se o aperfeiçoamento dos fortes? Ou o melhor caminho é fortalecer os pontos fracos ? Combatividade ou competitividade, heim!?
-- Seja mais clara, ágil e objetiva nos seus questionamentos, senhora!! - adverte um dos treinandos.
(Mensagem 3 -- From Lerdson: Estou novamente desempregado. Conto com a sua inestimável influência junto aos seus amigos políticos. Sua benção, Lerd) As drogas arruinaram a carreira brilhante deste meu sobrinho; está um trapo; tão bonito, vigoroso , educado ... uma pena – imagina em pensamento.
Outra pergunta da instrutora:
-- Como destinguir o intuitivo do instintivo, lembram? O que é um sujeito pró-ativo...hum?- Eis alguns pontos que sugerem nossas reflexões urgentes !
Murmúrios.
Já em pé, e se aproximando dos atentos ocupantes da primeira fila de cadeiras, ergue os braços , enquanto, lançando o olhar às ultimas fileiras do fundo da sala, chama a atenção para uma caixa de fósforos na mão direita e um copo de plástico , na esquerda:
-- Atenção aqui, atenção, vejam aqui! Há até bem pouco tempo, vinte ou trinta anos, pouco mais ou menos, esta caixa de fósforos se constituía só numa caixa de fósforos e aqui, este copo, só um copo: conceito aristotélico! Hoje, vivemos num mundo diferente: esta caixa de fósforos pode se transformar num copo ou vice-versa: conceito zen!
Inquietação.
-- Ah, e não esqueçam destas nossas novas companheiras -- exclama, enquanto recolhe algumas folhas de cartolina afixadas às paredes da sala, onde se destacavam os vocábulos: Mudanças , Missão, Metas...
Preocupação.
-- Relaxem, relaxem...logo mais à noite a empresa oferecerá um coquetel de confraternização para o qual todos vocês estão convidados. E então?! -- diz Stefhanie Westborn, agora entre os treinandos, distribuindo-lhes folhas de papel impressas com a seguinte nota:
Se eu aceitasse aquele emprego, estaria perdido. Converter-me-ia num caixeiro, numa máquina, num cavalo de circo, que dá suas trinta ou quarenta voltas, bebe, come e dorme nas horas marcadas. Converter-me-ia numa criatura vulgar. E então isto ainda se considera viver: esse girar como uma mó, essa eterna repetição das eternamente mesmas coisas! BALZAC

Tuesday, November 15, 2005

Restam os plânctons

Com a conta de luz vencida há uma semana, nem a chuva fina do meio-dia, trazida pela lestada persistente, muito comum no litoral barriga-verde nesta época de primavera no hemisfério sul, me intimidou naquela segunda-feira.
Muito menos o corajoso ambulante que puxava a pequena carroça de duas rodas, uma espécie de “gaiola” gigante, sem portas, cercada de telas de arame. Dentro dela, atrás, em pé, recostado numa peça de compensado naval pintado em azul e verde, única parede do veículo em madeira, além do assoalho amarelo, e onde se lia em letras brancas e grandes, SIGA JESUS, trazia uma criança encapuzada e triste.
Avistei-os estacionados à beira da praia urbana, em frente ao velho casarão dos noruegueses , no final da antiga rua dos Pescadores.
-- Pai, tenho sede e fome – diz a pequena e tímida criatura, com uma voz trêmula.
Ato contínuo o homem de meia-idade, paciente, trajando bermuda jeans e sem camisa, calçando sandálias de dedo, todo encharcado, saca um....PÃO e reparte-o com o filho:
-- Toma, é o almoço! – diz estendendo um pedaço do alimento.
Retoma a puxada.
Ouço:
-- Sou testemunha! – grunhe o grande pássaro preto do oceano que perto dali pescava, antes de mergulhar por alguns segundos.
-- Poucos têm bastante; muitos, pouco têm ! – continuou o pescoçudo mergulhão, desolado, voltando à superfície sem um único peixe no enorme bico amarelado.
Outro mergulho: 1, 2, 3, 4,... 8,... 16,... 32...um minuto...1, 2, 3, 4,... 8...12, ... um minuto e doze segundos depois...
-- Ufa !!, me afogo neste mar de lama e nada encontro prá comer. Antes, aqui mesmo no raso, à vau, peixes e camarões se multiplicavam. Hoje....saco plástico, filtro de cigarro...garrafas – diz o vivente marinho.
-- Restam os plânctons, arrisco.
Vôo rasante.
A chuva dá uma estiada.
Sigamos!