Friday, December 22, 2006

GATOS PARDOS ( 7 )

-- Tenho outras histórias senhor... – interrompe a mulher, claramente desinteressada na continuação do pretenso ensinamento. Ouça esta:

LEI ATÁVICA

Mesmo com o frio da semana passada, na terça convidei o Zyg para outro passeio à ilha.
-- " À vela, ou a remo ? perguntou-me com fina ironia, sabendo de antemão o horário de saída do ônibus.
Sem alternativa, embarcou calado e calado se quedou até receber, na nuca, remessas certeiras de tossidas úmidas lançadas pela ansiosa passageira do banco de trás.
--" Mereço! - resmungou resignado.
Inquietou-se aos primeiros sinais de desconforto da filha do casal que ocupava os assentos à sua frente. Vômitos por tudo! O pai, como sempre o pai, claro, não conseguiu abrir a janela, emperrada pelo tempo.
Zygmunt não agüentou.
--" Sai dessa, homem!! , cutucou-me resolvido, antes de mudar de lugar. E acrescentou: " O Ibsen tinha razão quando escreveu a peça Peer Gynt. Deveria ser lida por todo mundo ."
Não li ainda. Além dessa escreveu muitas outras, constatei depois.
Ibsen, ou melhor. Henrik Ibsen, norueguês nascido no ano de 1828, dava muita importância à sua ascendência: dinamarquesa, escocesa, e alemã.
O visconde de Colleville e Fritz de Sepelin, em documentário sobre o dramaturgo, afirmam que " Ibsen não tem um gota de sangue norueguês nas veias e que, de acordo com a lei atávica, a influência das mulheres sob o ponto de vista intelectual se fez sentir particularmente para ele."
"No que diz respeito aos ataques de que você é objeto, -- escreveu Ibsen a um crítico e combativo amigo, numa carta de abril de 1872, -- das mentiras, das calúnias, etc., vou dar-lhe um conselho que por experiência própria sei ser bom. Tome uma atitude arrogante, é a única arma que se deva usar em semelhante caso. Olhe firme para a frente, não deixe supor que uma palavra de seus inimigos possa feri-lo. Numa palavra faça como se ignorasse a existência de seus adversários . Crê que seus ataques tenham força de vida? Antigamente, quando eu lia , pela manhã, algum violento artigo contra mim, a mim mesmo dizia: sou um homem liquidado, jamais me poderei reerguer! E a-pesar- disso me reergui; ninguém mais se lembra do que então se escreveu, eu mesmo faz muito tempo que o esqueci. Assim pois não caia na vulgaridade de se defender. Comece uma nova série de conferências, tenha uma calma e um sangue frio irritante, um desdém alegre por tudo que oscila e ameaça ruína em torno de você. Acredita que as coisas carcomidas possam resistir?"
-- " Sei lá ??!! – ouvi da moça, que deduzi estudante de biologia marinha pela bolsa que carregava, sentada ao meu lado, desinteressada, mesmo sem ser perguntada.
Quem sabe?!



GATOS PARDOS ( 8 )

A lealdade

Odaw Dorra bebia demais, era vadio e meio doido. Morava com a mãe, a viuva Condessa Catharina, a Tagarela, num velho castelo , quase a cair, até que a rainha do país vizinho , bem intencionada, contam, doou-lhes um novo, pré-fabricado.
Dúvidas!
Certo dia, logo, quando se avizinhavam as eleições proporcionais no principado, Hoajub , cabo eleitoral experimentado e matreiro, espertamente, no meio da noite, afixou um painel de propaganda política de seu candidato, defronte ao novo castelo, espalhando à vizinhança , falsamente, a notícia: " Doei-lhes o imóvel em troca do voto!"
-- E depois da eleição vem a tinta, a louça do banheiro, os lustres...e mais, os dois serão nossos convidados especiais para a festa da posse!!
Convite para posse? Não, não! Dorra conhecia perfeitamente o comportamento da maioria dos políticos: só lembram do eleitor até sua eleição!
Arruinados, mãe e filho até gostaram da idéia da placa. Simpatizavam com aquele político, da ala dos "autênticos" do partido, sempre votado pelo falecido marido e pai, o Conde Leon, esquerdista convicto que, quando provocado, não se cansava de afirmar:
" Voto num cachorro mas não voto em candidato de outro partido",
Inteirada de tudo, a rainha doadora mandou-lhes um recado duro:
" Se não sumissem com aquele painel, mandaria destruir o novo castelo ! Ele me pertence. Retirem essa propaganda ou, do contrário...!"
Blefe? Chantagem? Ou a sandice prevalecendo à razão?
Fincaram o pé ! não trairiam o falecido, jamais!
-- Pois que destruam o castelo! ainda temos vergonha na cara. O painel fica, ora pois !! – responderam com convicção.
E ficou, até que dias depois...
-- Um homem baixinho, todo engravatado, dizendo-se Juiz, entrou aí e a levou! - relatou sucinta e apressadamente a moradora vizinha à rainha, perguntada sobre o desaparecimento da placa.
-- Invasão de domicílio; arrombaram o portão, olhe! – constatou a velha senhora, de regresso ao lar, no início da manhã, após uma noite inteira de arruaça.
-- Isso não ficará assim – esperneou Dorra contrariado, ao ser acordado com a notícia – sou analfabeto mas não sou burro!
Clamaram e reclamaram, verbalmente. Sem êxito, apelaram, então, ao advogado amigo que registrou petição:
"... abertura de processo investigatório para apurar abuso do poder de autoridade."
Decisão: "...a colocação de propaganda eleitoral em bens particulares é submissa, com liberdade relativa. Ou seja, haverá de se amoldar aos preceitos de higiene e estética urbana, assistindo ao Poder Público o direito de agir, inclusive sendo lícita a retirada do material publicitário."
Liberdade relativa, voto duvidoso!
O candidato foi eleito sem os votos deles. A mãe, não era eleitora e o filho, embriagado no dia da eleição, não votou.
Depois da morte da mãe, desolado, ele vendeu tudo. Isolou-se com um amigo, o cachorro nomeado atrevido, numa ilha.
Detesto voto obrigatório!

Sunday, December 10, 2006

GATOS PARDOS (6)

UM BOI EM CIMA DE UMA VELA

JOSEPH, homem corajoso, dono de uma enorme ambição e muita esperança, convida ADAM para uma estranha empreitada:
munidos de foice, enxada e pá, numa bicicleta emprestada na véspera, os dois velhos amigos e vizinhos chegam bem próximo ao lugar indicado, meio dia, em ponto, na segunda lua cheia do verão, sem testemunhas, tudo conforme determinava o "aviso" recebido num sonho: há um pote cheio de ouro enterrado sob as raízes da jaboticabeira do final da raia.
Depois de percorrerem, à pé, alguns metros da antiga pista encravada na densa mata costeira do sul da ilha, constatam-na, agora, dominada por cortantes capins-serra e traiçoeiras urtigas floridas; os gravatás aguados, nascedouros de mosquitos e pernilongos, abrigam algumas famílias de sapos cantantes; sob as folhas secas abundantes, receiam a presença de animais rastejantes. ali já não havia corridas de cavalos há alguns anos, concordam ambos, antes de quase tropeçarem num simpático gambá.
E a centenária e frondosa jaboticabeira? Só avistam restos chamuscados de seu tronco, antes robusto e avermelhado, ora ilhado por buracos. Decepção!
__ Chegamos tarde demais!
Contudo, cavamos mais um monte de buracos e nada. Eu já estava de saco cheio. José? Apesar de quase morto de cansado, não desistia. Lá pelas tantas, caiu uma forte ventania, em rajadas açoitantes. e, de repente ... , à distância, não muita, surge uma sombra repentina e, nela, um cachorro preto, grande, rosnando, dominado às custas por um pequeno homem, mulato, semi nu, passos curtos e rápidos, com cara de poucos amigos e mudo. Nenhum sinal.
Logo, vieram pedras, uma chuva delas. caíam próximas, mas, estranhamente, não nos atingiam. eu, morto de medo, claro, tremia qual uma vara verde.
-- Vamos embora Zé, vamos! - insisti.
Não. Valente, ele persistia cavando.
-- O medo é o azar da vida, rapaz!
Mais vento e mais pedra!
Eu heim!, saí correndo. Só parei perto do velho pontilhão de madeira que cruzava o riacho, perto da estrada. Ali, previamente, havíamos marcado para um eventual reencontro. não demorou muito, José apareceu. Querendo mostrar tranqüilidade mas todo sujo e encharcado de tanto suor, disparou: "vi um boi sentado em cima de uma vela."
Acordei!! ... quase sufocado pela fumaça, a tempo ainda de apagar a chama da vela, caída, queimando a fina camada de cera do assoalho do pequeno dormitório do pavimento superior do sobrado reservado aos empregados da fábrica de lingüiças, onde eu dormia, enquanto lá permaneci refugiado, sem vontade de frequentar as aulas do primeiro ano do ginásio.
- o quê? -- perguntou o motorista com uma ponta de ironia -- um boi sentado em cima de uma ... de uma vela?! ah,,, não!
Como ...?! - assustou-se a passageira, depois de instantes calada - Como o senhor ouviu?!
Ouvi tudo, senhorita..., tudo!
mas ... eu não... estava só...... mais depressa, por favor, senhor!
-- Quem muito depressa corre, bate e chega tarde; quando chega, senhorita! "Apressa-te devagar", diz o provérbio, -- comenta o motorista. E continua, ensinando:
-- Quanta saudade da troca de revistas na porta do cinema, nas tardes de domingo, antes das matinês: o Zorro e seu amigo Tonto; Roy Rogers. Ah, e O Fantasma e seu cão Capeto, lembra-se? Os amigos dos pigmeus , aquela tribo de homens pequeninos que habitavam a grande floresta negra, onde trabalhavam com ouro e cuidavam de imensos tesouros escondidos, negados aos desmedidos forasteiros ambiciosos? Pois a ambição é perniciosa, senhorita! Ademais, neste mundo, creia, não gozamos de um domicílio duradouro e eterno, como imaginam os vaidosos integrantes da ala da cobiça, mas sim, de uma pousada frágil e provisória, todavia um maravilhoso e extraordinário legado da Natureza, de Deus, a quem, verdadeiramente, coube a tarefa divina de criação. Os evolucionistas, senhorita....
GATOS PARDOS (6)

UM BOI EM CIMA DE UMA VELA

JOSEPH, homem corajoso, dono de uma enorme ambição e muita esperança, convida ADAM para uma estranha empreitada:
munidos de foice, enxada e pá, numa bicicleta emprestada na véspera, os dois velhos amigos e vizinhos chegam bem próximo ao lugar indicado, meio dia, em ponto, na segunda lua cheia do verão, sem testemunhas, tudo conforme determinava o "aviso" recebido num sonho: há um pote cheio de ouro enterrado sob as raízes da jaboticabeira do final da raia.
Depois de percorrerem, à pé, alguns metros da antiga pista encravada na densa mata costeira do sul da ilha, constatam-na, agora, dominada por cortantes capins-serra e traiçoeiras urtigas floridas; os gravatás aguados, nascedouros de mosquitos e pernilongos, abrigam algumas famílias de sapos cantantes; sob as folhas secas abundantes, receiam a presença de animais rastejantes. ali já não havia corridas de cavalos há alguns anos, concordam ambos, antes de quase tropeçarem num simpático gambá.
E a centenária e frondosa jaboticabeira? Só avistam restos chamuscados de seu tronco, antes robusto e avermelhado, ora ilhado por buracos. Decepção!
__ Chegamos tarde demais!
Contudo, cavamos mais um monte de buracos e nada. Eu já estava de saco cheio. José? Apesar de quase morto de cansado, não desistia. Lá pelas tantas, caiu uma forte ventania, em rajadas açoitantes. e, de repente ... , à distância, não muita, surge uma sombra repentina e, nela, um cachorro preto, grande, rosnando, dominado às custas por um pequeno homem, mulato, semi nu, passos curtos e rápidos, com cara de poucos amigos e mudo. Nenhum sinal.
Logo, vieram pedras, uma chuva delas. caíam próximas, mas, estranhamente, não nos atingiam. eu, morto de medo, claro, tremia qual uma vara verde.
-- Vamos embora Zé, vamos! - insisti.
Não. Valente, ele persistia cavando.
-- O medo é o azar da vida, rapaz!
Mais vento e mais pedra!
Eu heim!, saí correndo. Só parei perto do velho pontilhão de madeira que cruzava o riacho, perto da estrada. Ali, previamente, havíamos marcado para um eventual reencontro. não demorou muito, José apareceu. Querendo mostrar tranqüilidade mas todo sujo e encharcado de tanto suor, disparou: "vi um boi sentado em cima de uma vela."
Acordei!! ... quase sufocado pela fumaça, a tempo ainda de apagar a chama da vela, caída, queimando a fina camada de cera do assoalho do pequeno dormitório do pavimento superior do sobrado reservado aos empregados da fábrica de lingüiças, onde eu dormia, enquanto lá permaneci refugiado, sem vontade de frequentar as aulas do primeiro ano do ginásio.
- o quê? -- perguntou o motorista com uma ponta de ironia -- um boi sentado em cima de uma ... de uma vela?! ah,,, não!
Como ...?! - assustou-se a passageira, depois de instantes calada - Como o senhor ouviu?!
Ouvi tudo, senhorita..., tudo!
mas ... eu não... estava só...... mais depressa, por favor, senhor!
-- Quem muito depressa corre, bate e chega tarde; quando chega, senhorita! "Apressa-te devagar", diz o provérbio, -- comenta o motorista. E continua, ensinando:
-- Quanta saudade da troca de revistas na porta do cinema, nas tardes de domingo, antes das matinês: o Zorro e seu amigo Tonto; Roy Rogers. Ah, e O Fantasma e seu cão Capeto, lembra-se? Os amigos dos pigmeus , aquela tribo de homens pequeninos que habitavam a grande floresta negra, onde trabalhavam com ouro e cuidavam de imensos tesouros escondidos, negados aos desmedidos forasteiros ambiciosos? Pois a ambição é perniciosa, senhorita! Ademais, neste mundo, creia, não gozamos de um domicílio duradouro e eterno, como imaginam os vaidosos integrantes da ala da cobiça, mas sim, de uma pousada frágil e provisória, todavia um maravilhoso e extraordinário legado da Natureza, de Deus, a quem, verdadeiramente, coube a tarefa divina de criação. Os evolucionistas, senhorita....
GATOS PARDOS (5)

Capítulo Dois

INTERVALO

No meio de uma tarde cinzenta e fria do final do outono do ano 2000, ADAM recebe a notícia da gravidez da esposa. Pelo telefone público, recém instalado na praça da igreja matriz, Eva faz o anuncio antes mesmo de chegar a casa, pouco depois da costumeira consulta ao dentista.
- Adam ?
- eva?!?
a revelação da chave do Tio Gabriel Oslec! Ele estava certo, viu?!
Revelação!?! Depois, depois eu...
Claro seu bobo, estou grávida ...!!! – completou .
Mas ...Ai...Ai..huumm...........
- Adam... ?!?!
Como resposta ouve gemidos abafados, distantes.
Impaciente , nem desliga o telefone. Pára o primeiro táxi que avista e entra , quase nem conseguindo indicar o endereço ao motorista.
- - depressa, senhor, zona norte !
pois não, senhora. mas, que houve ? por que essa aflição toda ?! Tenha calma; há remédio prá tudo, menos...
Bobagem! Coisas que acontecem só naquela rua !!
mas... que rua, senhora ?
a minha rua, senhor. a rua dos sonhos.
rua dos sonhos ?!?
Isto mesmo, rua dos sonhos..... e dos loucos. Imagine que eu estava ao telefone falando com meu marido e, de repente, comecei a ouvir gemidos estranhos,... creio que caiu...sei lá, e não é a primeira vez.. mais depressa, senhor, por favor!
- logo chegaremos – intervém paciente e educadamente o motorista, um homem de estatura mediana, pele morena, cabelos lisos um pouco grisalhos , com um tom de voz beirando à meiguice.
enquanto não chegavam, congestionados no trânsito, EVA imaginava o cenário do acidente doméstico: ADAM, com as calças abaixadas até os joelhos, caído à porta do banheiro, ao lado de uma cadeira quebrada. Mais uma vez!
Continuava uma mulher muito bonita: morena clara, cabelos pretos cortados curtos, olhos esverdeados insinuantes, alta e magra, não aparentava os seus já quase trinta anos, dos quais , doze na companhia azeda daquele homem incomum. Apaixonada por um recém-formado dentista, conhecido na adolescência, com quem mantinha encontros semanais, já não se importava com as individuais fantasias sexuais do marido.
-- É a Síndrome da Espiagem. Imagine que ele se masturba espiando o banho da própria sobrinha ! – confessa indignada. E continua a delação:
-- Aos treze , quatorze anos, ele espiava as danças de salão, trepado numa bicicleta, noite inteira. Com sete anos de idade, creia, já freqüentava bordéis!
-- Impossível!
-- Seus pais eram donos de um posto de revenda de pães. Antes do amanhecer, diariamente, com um saco de pão nas costas, supria as boates da vizinhança. A distância até as "quebradas", como dizia ele, estreito e lamacento sob chuva, ou empoeirado com tempo bom, era vencido em pouco mais de um quarto de hora e seguia o leito sinuoso de um riacho de águas escuras, berçário de peixes e crustáceos , margeado, no lado mais alto, por uma capoeira onde predominavam os aguapês , pitaguarás, cafés-do-mato, e. no outro lado, por um mangue baixo, de solo arenoso . E foi numa manhã de chuva fina e fria de junho, ainda sob os estalidos provocados pelos brasidos teimosos dos restos das fogueiras festeiras de São João, da véspera, que o menino ADAM protagonizou a primeira cena da peça teatral de sua vida cotidiana.
Contou-me:
"Ainda no escuro do final de mais uma longa noite de inverno, sob uma chuva fina persistente, que molhava dos pés à cabeça, tremendo de frio, me aproximei da entrada principal do Casarão Oliva, um velho sobrado de madeira, edificado na década de 1920 , que abrigava a principal boate da região, pintada de verde escuro, rodeada por um amplo e bem cuidado jardim dominado pelo colorido primário dos lírios amarelos e das rosas vermelhas.
O desbotado guarda-chuvas guardava o saco:
-- O pão não pode molhar, Adam! – disse-lhe o pai antes de sair de casa.
"- Atchim! Resfriado pode. Ah! mas quando eu crescer prometo que... não importa. Agora, a tarefa é a entrega do pão; e seco, menino! Não importa, -- continua no devaneio --, hoje o Brasil vai ser campeão mesmo! Perder para os suecos pernas de paus? Duvido! A festa vai ... mas, o que é aquilo?!"
Plantei-me estático, paralisado. Meus pés, descalços , inchados por causa de uma frieira que teimava, grudaram no barro gelado que cobria o leito enlameado da estrada.
" um homem , nu, sai pela janela do sótão, agarra-se ao tronco do mamoeiro adjacente e desliza até o canteiro de marias-sem-vergonha; recolhe algumas peças de roupas e corre assustado por entre as roseiras, atravessando o imenso tabual da nascente do riacho, desaparecendo rapidamente no meio da vegetação do pé do morro.
Adiantei-me, poucos passos:
-- ei ...ei! uma mulher caída... será que ... está morta!?
-- Mas...é Maria, sim é Maria! - gritei desesperado, agachando-me, ao reconhecer o corpo que jazia estendido. Era ela que no fim do mês pagava a conta do pão.
Por sobre seu vestido preto, comprido até os pés, vi que sobressaia um elegante xale acizentado, manchado de sangue. Arrepiei-me. O cabelo, louro pintado, esvoaçado, misturava-se à relva orvalhada e quase escondia a arma utilizada: uma pistola. Pistola, de verdade?! Jamais havia sequer tocado numa arma daquelas.
Ajoelhado, encostei minha cabeça sobre seu peito e constatei que seu coração ainda batia. Fraco, mas batia. O suficiente para articular algumas palavras:
""— Os homens.,.. são todos iguais mesmo: caçadores, ...cretinos e ..cooovaaarrrdeeessss...""
Gritei . Bati outra vez ? Como bater com as mãos ocupadas? A mão esquerda segurava o guarda-chuvas; a outra, o saco do pão ! Arranje-se Adam! Chutei a parede com raiva: ninguém ! É sempre assim, nessas horas ninguém aparece. "...Atropelaram o coitado do João, no meio da tarde, à saída do estádio de futebol, em plena luz do dia, e ninguém viu nada. Cegos, surdos e mudos" pensou, lembrando da reclamação do pai ao padre, logo depois de uma missa dominical matutina.
Fui até os fundos da casa e pendurei o saco do pão no lugar de sempre: um prego fixado na soleira da janela da cozinha, ao lado da chaminé.
Voltei e constatei o corpo no mesmo lugar, do mesmo jeito. Perguntei-me: Será que está morta mesmo? Suicídio ou assassinato? E essa gente toda, onde está? Ninguém viu nada? Nem ouviram?
-- Socorro! Socorro!! – gritei novamente. Nada, ninguém.
O dia clareia...é tempo de voltar.
Antes, inocente, recolhi a pistola e cobri a pobre coitada, pelo menos sua cabeça, com o guarda-chuvas.
No portão, ainda voltei-me num último e desconfiado olhar: o corpo e o guarda-chuvas continuavam lá!
Saí correndo.

Tuesday, July 11, 2006

GATOS PARDOS (4)

O PESADELO

Amanhece e..., viciado, lá está ele, fraco das pernas, tremedeira nas mãos, sentado à porta do mesmo botequim, esperando pelos mesmos amigos, sonhando com a primeira dose da mesma bebida destilada. Num instante e dois ou três goles depois, agressivo, acusa e nomeia os políticos corruptos, discursa e discorda das últimas medidas econômicas anunciadas para conter, outra vez, a inflação e o déficit das contas públicas, demitindo o ministro anunciante e, por fim, já sem fôlego, escala o seu onze preferido para a seleção de futebol.
Anoitece. Embriagado, antes de dormir, degusta a preferida sobremesa de acusações à inocente mulher, depois de engolir a única refeição do dia: farinha e feijão, frios!
Pois, num dia desses qualquer, transtornada e cansada de tudo, a descontrolada Abigail Eva Lillith, não lhe dá qualquer chance de abrir a boca e dispara uma vez só.
-- Maldito! - grita ela, cega de raiva, puxando o gatilho do revolver calibre 22, emprestado dias antes da solitária vizinha e amiga Thereza Esneike.
A bala atravessa o lado direito do peito do marido e se aloja cravada num dos posteres do seu time de futebol adorado que, providencialmenbte, cobriam as frestas da parede do dormitório, barrando a passagem dos famigerados e sedentos maruins.
Ferido mortalmente, ADAM agarra-se à cortina da porta do quarto, feita de chita lilás estampada e, antes de cair estatelado, ainda encontra forças para esboçar um breve e cínico sorriso.
Aplausos!
Trombetas ressoam magníficas. No palco, forrado por uma grossa camada de serragem que camuflava aquele ambiente enlameado , EVA se apresenta perante o juiz que lhe folheia o processo onde tudo está registrado:
-- Lesbianismo , adultério, homicídio...defenda-se mulher!
-- .....foi para assustá-lo, meritíssimo, atirei só para assustá-lo mas ... infelizmente... -, confessa ela ingenuamente arrependida no final do seu depoimento, depois de se defender de todas as acusações.
O julgamento é sumário e interativo. O público que lotava as dependências da grande arena é consultado.
Palavra livre:
-- É tudo culpa dela – esbraveja o homem calvo e gordo, bochechas rosadas e respiração acelerada, denunciando pressão arterial alta, dono do único armazém de secos e molhados – farinha e cachaça, básicos -- da região, conhecido pela freguesia como Benutre , comodamente sentado na primeira fileira do seu camarote cativo. E não perdoa:
Mulher foi feita para ficar em casa, cozinhando e lavando; esquentando-se no ferro de passar e esfriando-se no tanque de lavar !— conceitua irônico .
-- Essa, -- continua -- resiste, diz-se moderna, revolucionária, independente. Adam, que Deus o tenha – reverencia olhando para o alto --
era meu cliente diário e reclamava muito sobre isso, coitado. Já não aceitava mais o comportamento contestador da esposa. Por vezes até, muito abatido, senhoras e senhores, acreditem se quiserem, confessava-se traído por essa adúltera travestida de donzela que, agora, escondida sob as máscaras da ingenuidade e da timidez, imagina-nos imbecis e idiotas. E ainda, pasmem !, mostra-se arrependida e fala em legítima defesa da honra?! Santa paciência...atrevida é o que ela é!
Enquanto isto um velho senhor , sentado um pouco mais acima, cochichava ao ouvido atento do jovem espectador sentado ao seu lado:
"—Estás lembrado da estória que Adam contou-nos durante a última reunião do clube?
--
Qual delas?
--
A do contrabando, Johan!
-- Não me diga que..
-- Ele mesmo!
-- Ah?!?!?!
-- Não acredita? Pois pergunte ao Josef. Ele e o Darcy conhecem essa estória toda.
-- Mas... que safado ...se apresenta como um homem honesto, íntegro, defensor da moral e dos bons costumes...eu não creio que...
-- Acredite rapaz, mera aparência, somente aparência. Conheço-o há tempos, desde a adolescência, quando estagiava numa empresa do Governo, graças à influência política da família que, mais tarde, sem êxito, tentou elegê-lo senador.
-- Um sujeito desses, Senador?!
-- Isso mesmo. Sabe-se é que seus adversários, numa manobra maquiavélica, divulgaram notícia acusando-o de apropriações indébitas, enriquecimento ilícito e de agressões físicas aos adversários.
-- Haja paciência.
-- Cuide-se com esse gordo falante! Ele é capaz de tudo, até de ...
Atento, interrompe o diálogo e levanta-se rápido ao perceber o fim das reflexões acusadoras do comerciante. Pede a palavra e obtém.
-- Senhores, Senhoras, Jovens ! --
-- Tio Gabriel ?!? – espanta-se a acusada, ao ouvir aquelas primeiras palavras do velho homem , a quem tanto admirava.
"— O que estamos assistindo aqui não passa de um linchamento moral, a partir de acusações levianas e sem nenhum fundamento, a uma mulher dona de muitas virtudes, dentre elas a mais sublime de todas, a piedade. Embora não seja dotada de alguns predicados caseiros, é certo, sempre honrou o marido, ainda que por ele maltratada física e verbalmente, vítima de uma desconfiança doentia. Ademais, e isto é relevante, registre-se que o acidente -- continua o defensor sob vaias – acidente sim!—reafirma firmemente
-- ocorreu num período de manifesto descontrole emocional seu, o da chamada tensão pré-menstrual. Boa parte das mulheres, nessas ocasiões, são acometidas de intensas crises emocionais. Muito embora tenha ela praticado um ato agressivo desnecessário e extremo, rogo-lhe, meritíssimo juiz, sentenciá-la com a pena mínima, pois, contudo, merece nossa compaixão. Obrigado.
-- Levantem-se os que a julgam inocente!
– intima o moderador do ato.
Apenas a mãe da acusada, aos prantos e o jovem Johan, incrédulo e assustado, ousam acompanhar o velho Gabriel que permanecia de pé, em meio ao silêncio indiferente dos demais.
--" Culpada - sentencia o homem vestido de preto, condutor do espetáculo, com voz solene e forte sotaque espanhol, sob o olhar complacente do público espectador que lotava totalmente a arquibancada da grande arena, divulgando o resultado final do julgamento:
97, 28% dos internautas também consideram-na culpada, sra. Eva Abigail Lilith!!.
Aplausos.
À aterrorizada mulher, então conduzida ao centro do palco, é indicado um arame de aço, suspenso, retesado, manobrado pelas mãos ágeis de meia dúzia de coloridos palhaços coniventes:
--Do lado de cá o inferno; lá, o céu. Boa sorte, senhora!
Já em cima do tablado de madeira, Eva dá início à travessia.
--Heim?! - assustada com o estridente e ensurdecedor apito da locomotiva do trem cargueiro passando junto à janela do quarto do casal, EVA acorda; ao lado, às apalpadelas, constata a presença de ADAM, vivo.
Na TV, faixas verticais descoloridas denunciam o pulsar digital dos segundos: 03:59:56..7...8...9...faltam 128 dias para o ano 2010!
Pula da cama.
--- Ufa! foi por pouco!! – diz para si mesma, aliviada, à janela, agradecida à imagem de Nossa Senhora esculpida na face iluminada da lua cheia que decorava o horizonte do céu infinito.
Desliga a TV e volta a dormir.

Thursday, June 01, 2006

GATOS PARDOS (3)

DELÍRIOS NOTURNOS

“ Ninguém tem nada com a minha vida; bebo com o meu dinheiro!”

Eis seu retrato:

O rosto, pálido e inchado, desfigurado, engole os olhos castanhos- esbranquiçados, escondidos sob grossas sobrancelhas; alguns pêlos, raros, brotam à entrada do afilado nariz; a boca, banguela, cercada por lábios finos, rosados e ressecados, é guardada por um espesso bigode grisalho que se estende ao queixo ovalado..
“-- A malvada engorda e dá brilho! –“
O cabelo liso e grosso de sujeira, castanho ensebado, longo, à altura dos ombros, mantinha-o, contudo, sempre bem alinhado: o pente de osso, sempre à mão, exibia-o, orgulhoso, como a um troféu, único!
“-- Herdei de meu avô, moço de convés do Lenitnes, lembram? Carregado de navalhas, tesouras e pentes, encalhou nas pedras da ilha do Farol, depois de arrastado por uma forte tempestade que lhe partiu os cabos de amarração. Salvaram-se ele e este pente, só ! “
Nas mãos trêmulas, as unhas compridas, sujas e maltratadas, contrastavam com a grossa aliança dourada que adornava o dedo médio esquerdo e o enorme e reluzente anel de prata, em forma de caveira, quase degolando o vizinho indicador.
“-- Já deixei esta marca na cara de muita gente boa! O sargento M. Duvyll que o diga!”
Não mentia! Haviam-se prometido há tempos. O lento M. Duhyll, um guarda-roupas de dois metros de altura e quase cem quilos de gordura e músculos, destro, enfrenta o rapidíssimo canhoto Adam, magro com pouco mais de um metro e setenta de altura, em encontro casual noturno, na primeira curva depois da velha ponte, no caminho que leva ao Morro das Quebradas. Resultado: o sargento, nocauteado, foi atendido no Samdu,-- Serviço de Atendimento Médico de Urgência -- onde permaneceu em observação até o desaparecimento de uma estranha marca de caveira na parte inferior do queixo.
No peito, sobre a amarelada camisa de gola olímpica, antes branca, mangas compridas, Adam carrega um crucifixo feito em madeira escura, eterno símbolo de sua fé, ora, ainda, a derradeira esperança de uma vida eterna e melhor.
"-- Se Deus quiser, se Deus quiser" -- defende aos que lhe desejam melhor sorte. Desejos, desejos, nenhuma ação!
Nos pés, os dedos longos e finos sustentavam as sandálias de borracha, sempre da cor azul, ornando com a calça de brim desbotada.
Só uso calça americana e sandálias.
E assim os dias passam, iguais, na mesmice

Tuesday, March 28, 2006


Sunday, March 26, 2006

Friday, February 10, 2006


AUTÊNTICOS E TEMPESTIVOS

Por razões e ações conhecidas ou, em alguns casos, vez por outra, omitidas, o ambiente político-partidário-eleitoral, tal qual a temperatura da terra, tende ao esquentamento geral.
"A política, no ensinamento de Jacques Rancière, Professor Emérito de Estética e Política na Universidade de Paris VIII, ocupa-se do que se vê e do que se pode dizer sobre o que é visto, de quem tem competência para ver e qualidade para dizer, das propriedades do espaço e dos possíveis do tempo."
Pois, em recente artigo, -- O Principe Falante -- publicado no jornal Folha de São Paulo, José Arthur Giannotti, Professor Emérito na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, critica o discurso do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva e vê debilidade no atual debate democrático. " ... a democracia do marketing parece acuada pela verdade, escreve ele, pois o político fala o que as pesquisas de opinião pública lhe ensinam." E continua: " Ao detectar as vontades e anseios dos diversos grupos da população, o político pode se dar ao luxo de dizer aquilo que se quer que ele fale, muitas vezes sem levar em conta as possibilidades de cumpir sua palavra." Merece crédito.
Ainda nos anos 70 do século findo, tempos quentes do então regime autoritário instalado, na engajada MPB – Música Popular Brasileira, germinam inspirados compositores. Um deles, Sérgio Sampaio, estala versos em brilhante canção:
" Há quem diga que eu não sei de nadaQue eu não sou de nada e não peço desculpasQue eu não tenho culpa, mas que eu dei bobeira
..."
HOJE, em cenário de liberdade construído por muitos esquecidos, pintado por alguns ausentes e ocupado por outros vivos, há quem diga algo muito semelhante. O título da música denuncia:" Eu quero é botar meu bloco na rua." Haja paciência!
Não me atrevo a advinhações futuras.
Convém, entretanto, lembrar aos vivos e aos mortos também, o que disseram os ausentes, quase sempre esquecidos, ao longo do tempo:
"En primer lugar,..." observa o poeta, teatrólogo e articulista espanhol Mariano José Larra, em artigo -- ? Quién es el publico y donde se encuentra ?—publicado na Revista Española por volta de 1830:
"...que el público es el pretexto, el tapador de los fines particulares de cada uno. El escritor dice que emborrona papel y saca el dinero al público por su bien y lleno de respeto hacia él. El médico cobra sus curas equivocadas, y el abogado sus pleitos perdidos por el bien del público. El juez sentencia equivocadamente al inocente por el bien del público. El sastre, el librero, el impresor, cortan, imprimen y roban por el mismo motivo, y, en fin, hasta el... pero ? a qué me canso? Yo mismo habré de confesar que escribo para el público, so pena de tener que confesar que escribo para mí.
Y en segundo lugar, concluyo: que no existe un público único, invariable, juez imparcial, como se pretende; que cada clase de la sociedad tiene su público particular, de cuyos rasgos y caracteres diversos y aun heterogéneos se compone la fisonomía monstruosa del que llamamos público; que éste es caprichoso, y casi siempre tan injusto y parcial como la mayor parte de los hombres que le componen; que és intolerante al mismo tiempo que sufrido, y rutinero al mismo tiempo que novelero, aunque parezcan dos paradojas; que prefiere sin razón , y se decide sin motivo fundado; que se deja llevar de impresiones pasajeras; que ama con idolatría sin porqué, y aborrece de muerte sin causa; que es maligno y mal pensado , y se recrea con la mordacidad; que por lo regular siente em masa y reunido de una manera muy distinta que cada uno de sus individuos en particular; que suele ser su favorita la medianía intrigante y charlatana, y objeto de su olvido o de su desprecio el mérito modesto; que olvida com facilidad e ingratitud los servicios más importantes. Y premia com usura a quien le lisonjea y le engaña; y por último, que con gran sinrazón queremos confundirle com la posteridad, que casi siempre revoca sus fallos interesados."
Hasta!, digo eu.