Tuesday, July 11, 2006

GATOS PARDOS (4)

O PESADELO

Amanhece e..., viciado, lá está ele, fraco das pernas, tremedeira nas mãos, sentado à porta do mesmo botequim, esperando pelos mesmos amigos, sonhando com a primeira dose da mesma bebida destilada. Num instante e dois ou três goles depois, agressivo, acusa e nomeia os políticos corruptos, discursa e discorda das últimas medidas econômicas anunciadas para conter, outra vez, a inflação e o déficit das contas públicas, demitindo o ministro anunciante e, por fim, já sem fôlego, escala o seu onze preferido para a seleção de futebol.
Anoitece. Embriagado, antes de dormir, degusta a preferida sobremesa de acusações à inocente mulher, depois de engolir a única refeição do dia: farinha e feijão, frios!
Pois, num dia desses qualquer, transtornada e cansada de tudo, a descontrolada Abigail Eva Lillith, não lhe dá qualquer chance de abrir a boca e dispara uma vez só.
-- Maldito! - grita ela, cega de raiva, puxando o gatilho do revolver calibre 22, emprestado dias antes da solitária vizinha e amiga Thereza Esneike.
A bala atravessa o lado direito do peito do marido e se aloja cravada num dos posteres do seu time de futebol adorado que, providencialmenbte, cobriam as frestas da parede do dormitório, barrando a passagem dos famigerados e sedentos maruins.
Ferido mortalmente, ADAM agarra-se à cortina da porta do quarto, feita de chita lilás estampada e, antes de cair estatelado, ainda encontra forças para esboçar um breve e cínico sorriso.
Aplausos!
Trombetas ressoam magníficas. No palco, forrado por uma grossa camada de serragem que camuflava aquele ambiente enlameado , EVA se apresenta perante o juiz que lhe folheia o processo onde tudo está registrado:
-- Lesbianismo , adultério, homicídio...defenda-se mulher!
-- .....foi para assustá-lo, meritíssimo, atirei só para assustá-lo mas ... infelizmente... -, confessa ela ingenuamente arrependida no final do seu depoimento, depois de se defender de todas as acusações.
O julgamento é sumário e interativo. O público que lotava as dependências da grande arena é consultado.
Palavra livre:
-- É tudo culpa dela – esbraveja o homem calvo e gordo, bochechas rosadas e respiração acelerada, denunciando pressão arterial alta, dono do único armazém de secos e molhados – farinha e cachaça, básicos -- da região, conhecido pela freguesia como Benutre , comodamente sentado na primeira fileira do seu camarote cativo. E não perdoa:
Mulher foi feita para ficar em casa, cozinhando e lavando; esquentando-se no ferro de passar e esfriando-se no tanque de lavar !— conceitua irônico .
-- Essa, -- continua -- resiste, diz-se moderna, revolucionária, independente. Adam, que Deus o tenha – reverencia olhando para o alto --
era meu cliente diário e reclamava muito sobre isso, coitado. Já não aceitava mais o comportamento contestador da esposa. Por vezes até, muito abatido, senhoras e senhores, acreditem se quiserem, confessava-se traído por essa adúltera travestida de donzela que, agora, escondida sob as máscaras da ingenuidade e da timidez, imagina-nos imbecis e idiotas. E ainda, pasmem !, mostra-se arrependida e fala em legítima defesa da honra?! Santa paciência...atrevida é o que ela é!
Enquanto isto um velho senhor , sentado um pouco mais acima, cochichava ao ouvido atento do jovem espectador sentado ao seu lado:
"—Estás lembrado da estória que Adam contou-nos durante a última reunião do clube?
--
Qual delas?
--
A do contrabando, Johan!
-- Não me diga que..
-- Ele mesmo!
-- Ah?!?!?!
-- Não acredita? Pois pergunte ao Josef. Ele e o Darcy conhecem essa estória toda.
-- Mas... que safado ...se apresenta como um homem honesto, íntegro, defensor da moral e dos bons costumes...eu não creio que...
-- Acredite rapaz, mera aparência, somente aparência. Conheço-o há tempos, desde a adolescência, quando estagiava numa empresa do Governo, graças à influência política da família que, mais tarde, sem êxito, tentou elegê-lo senador.
-- Um sujeito desses, Senador?!
-- Isso mesmo. Sabe-se é que seus adversários, numa manobra maquiavélica, divulgaram notícia acusando-o de apropriações indébitas, enriquecimento ilícito e de agressões físicas aos adversários.
-- Haja paciência.
-- Cuide-se com esse gordo falante! Ele é capaz de tudo, até de ...
Atento, interrompe o diálogo e levanta-se rápido ao perceber o fim das reflexões acusadoras do comerciante. Pede a palavra e obtém.
-- Senhores, Senhoras, Jovens ! --
-- Tio Gabriel ?!? – espanta-se a acusada, ao ouvir aquelas primeiras palavras do velho homem , a quem tanto admirava.
"— O que estamos assistindo aqui não passa de um linchamento moral, a partir de acusações levianas e sem nenhum fundamento, a uma mulher dona de muitas virtudes, dentre elas a mais sublime de todas, a piedade. Embora não seja dotada de alguns predicados caseiros, é certo, sempre honrou o marido, ainda que por ele maltratada física e verbalmente, vítima de uma desconfiança doentia. Ademais, e isto é relevante, registre-se que o acidente -- continua o defensor sob vaias – acidente sim!—reafirma firmemente
-- ocorreu num período de manifesto descontrole emocional seu, o da chamada tensão pré-menstrual. Boa parte das mulheres, nessas ocasiões, são acometidas de intensas crises emocionais. Muito embora tenha ela praticado um ato agressivo desnecessário e extremo, rogo-lhe, meritíssimo juiz, sentenciá-la com a pena mínima, pois, contudo, merece nossa compaixão. Obrigado.
-- Levantem-se os que a julgam inocente!
– intima o moderador do ato.
Apenas a mãe da acusada, aos prantos e o jovem Johan, incrédulo e assustado, ousam acompanhar o velho Gabriel que permanecia de pé, em meio ao silêncio indiferente dos demais.
--" Culpada - sentencia o homem vestido de preto, condutor do espetáculo, com voz solene e forte sotaque espanhol, sob o olhar complacente do público espectador que lotava totalmente a arquibancada da grande arena, divulgando o resultado final do julgamento:
97, 28% dos internautas também consideram-na culpada, sra. Eva Abigail Lilith!!.
Aplausos.
À aterrorizada mulher, então conduzida ao centro do palco, é indicado um arame de aço, suspenso, retesado, manobrado pelas mãos ágeis de meia dúzia de coloridos palhaços coniventes:
--Do lado de cá o inferno; lá, o céu. Boa sorte, senhora!
Já em cima do tablado de madeira, Eva dá início à travessia.
--Heim?! - assustada com o estridente e ensurdecedor apito da locomotiva do trem cargueiro passando junto à janela do quarto do casal, EVA acorda; ao lado, às apalpadelas, constata a presença de ADAM, vivo.
Na TV, faixas verticais descoloridas denunciam o pulsar digital dos segundos: 03:59:56..7...8...9...faltam 128 dias para o ano 2010!
Pula da cama.
--- Ufa! foi por pouco!! – diz para si mesma, aliviada, à janela, agradecida à imagem de Nossa Senhora esculpida na face iluminada da lua cheia que decorava o horizonte do céu infinito.
Desliga a TV e volta a dormir.