Wednesday, November 16, 2005







GATOS PARDOS (1)

Anoitece
A mulher sentou-se.
Breve silêncio.
Somente alguns derradeiros raios pálidos do sol poente de outono penetravam pelo vão superior da única janela da sala de treinamento do subsolo do moderno e solitário prédio cercado pelo antigo casario da praça central do vilarejo . Muito embora insuficiente para, ao menos, amenizar o odor exalado pelo mofo que tomava conta do desgastado carpete acizentado que forrava o piso do ambiente, todavia aquele feixe inclinado de luz, além de realçar o tom amarelado da elegante blusa de lã de Stephanie, indicava também o término de outro longo e estressante dia de aula; enfim, o último deles!
Bocejos.
Conectada à internet , a instrutora Stephanie cruza suas longas pernas, disfarçadamente à mostra sob uma saia de cor marrom, curta e justa. Ajeita, no rosto ovalado de testa curta, olhos de cor castanho-esverdeado, grandes, encimados por sobrancelhas grossas, nariz médio angular, queixo miúdo, de pele clara e acetinada, resultado das perseverantes sessões rejuvenesceras e de cremes importados, os óculos de leitura, denunciantes dos quarenta anos, que ela insistia em esconder, sobretudo, no louro ondulado do longo cabelo. Acessa seu endereço eletrônico e, enquanto com a voz suave e delicados meneios de cabeça, encadeia uma série de perguntas ao seu público, toma conhecimento das notícias da correspondência recebida:
-- Entenderam então...?? - diz aos ouvintes, cansada, mirando o monitor do microcomputador, clicando na primeira mensagem.
(" from Annie: Tio Frederico morreu às 05:30 da madrugada; o enterro será amanhã às 9. Beijos" ) Coitada da titia, descansou ! – fala para si mesma
--...a diferença entre o indivíduo bem sucedido e o...e ...com sucesso? E os nossos pontos fortes e fracos,...
( "Mensagem 2 - from Johan: Precisamos de sua ajuda urgente. Nosso irmão Peter percebeu a traição da tua cunhada, aquela.... – abraço do Joe ) Continua a crítica silenciosa aos textos: Eu sabia que aquela sujeita continuaria a... deixa prá lá, coisas da natureza humana, necessidade biológica; o culpado disso tudo é ele mesmo; devia...
Volta aos alunos:
--...quais critérios utilizamos para identificá-los? Os fracos devem ser esquecidos priorizando-se o aperfeiçoamento dos fortes? Ou o melhor caminho é fortalecer os pontos fracos ? Combatividade ou competitividade, heim!?
-- Seja mais clara, ágil e objetiva nos seus questionamentos, senhora!! - adverte um dos treinandos.
(Mensagem 3 -- From Lerdson: Estou novamente desempregado. Conto com a sua inestimável influência junto aos seus amigos políticos. Sua benção, Lerd) As drogas arruinaram a carreira brilhante deste meu sobrinho; está um trapo; tão bonito, vigoroso , educado ... uma pena – imagina em pensamento.
Outra pergunta da instrutora:
-- Como destinguir o intuitivo do instintivo, lembram? O que é um sujeito pró-ativo...hum?- Eis alguns pontos que sugerem nossas reflexões urgentes !
Murmúrios.
Já em pé, e se aproximando dos atentos ocupantes da primeira fila de cadeiras, ergue os braços , enquanto, lançando o olhar às ultimas fileiras do fundo da sala, chama a atenção para uma caixa de fósforos na mão direita e um copo de plástico , na esquerda:
-- Atenção aqui, atenção, vejam aqui! Há até bem pouco tempo, vinte ou trinta anos, pouco mais ou menos, esta caixa de fósforos se constituía só numa caixa de fósforos e aqui, este copo, só um copo: conceito aristotélico! Hoje, vivemos num mundo diferente: esta caixa de fósforos pode se transformar num copo ou vice-versa: conceito zen!
Inquietação.
-- Ah, e não esqueçam destas nossas novas companheiras -- exclama, enquanto recolhe algumas folhas de cartolina afixadas às paredes da sala, onde se destacavam os vocábulos: Mudanças , Missão, Metas...
Preocupação.
-- Relaxem, relaxem...logo mais à noite a empresa oferecerá um coquetel de confraternização para o qual todos vocês estão convidados. E então?! -- diz Stefhanie Westborn, agora entre os treinandos, distribuindo-lhes folhas de papel impressas com a seguinte nota:
Se eu aceitasse aquele emprego, estaria perdido. Converter-me-ia num caixeiro, numa máquina, num cavalo de circo, que dá suas trinta ou quarenta voltas, bebe, come e dorme nas horas marcadas. Converter-me-ia numa criatura vulgar. E então isto ainda se considera viver: esse girar como uma mó, essa eterna repetição das eternamente mesmas coisas! BALZAC

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