Sunday, December 10, 2006

GATOS PARDOS (5)

Capítulo Dois

INTERVALO

No meio de uma tarde cinzenta e fria do final do outono do ano 2000, ADAM recebe a notícia da gravidez da esposa. Pelo telefone público, recém instalado na praça da igreja matriz, Eva faz o anuncio antes mesmo de chegar a casa, pouco depois da costumeira consulta ao dentista.
- Adam ?
- eva?!?
a revelação da chave do Tio Gabriel Oslec! Ele estava certo, viu?!
Revelação!?! Depois, depois eu...
Claro seu bobo, estou grávida ...!!! – completou .
Mas ...Ai...Ai..huumm...........
- Adam... ?!?!
Como resposta ouve gemidos abafados, distantes.
Impaciente , nem desliga o telefone. Pára o primeiro táxi que avista e entra , quase nem conseguindo indicar o endereço ao motorista.
- - depressa, senhor, zona norte !
pois não, senhora. mas, que houve ? por que essa aflição toda ?! Tenha calma; há remédio prá tudo, menos...
Bobagem! Coisas que acontecem só naquela rua !!
mas... que rua, senhora ?
a minha rua, senhor. a rua dos sonhos.
rua dos sonhos ?!?
Isto mesmo, rua dos sonhos..... e dos loucos. Imagine que eu estava ao telefone falando com meu marido e, de repente, comecei a ouvir gemidos estranhos,... creio que caiu...sei lá, e não é a primeira vez.. mais depressa, senhor, por favor!
- logo chegaremos – intervém paciente e educadamente o motorista, um homem de estatura mediana, pele morena, cabelos lisos um pouco grisalhos , com um tom de voz beirando à meiguice.
enquanto não chegavam, congestionados no trânsito, EVA imaginava o cenário do acidente doméstico: ADAM, com as calças abaixadas até os joelhos, caído à porta do banheiro, ao lado de uma cadeira quebrada. Mais uma vez!
Continuava uma mulher muito bonita: morena clara, cabelos pretos cortados curtos, olhos esverdeados insinuantes, alta e magra, não aparentava os seus já quase trinta anos, dos quais , doze na companhia azeda daquele homem incomum. Apaixonada por um recém-formado dentista, conhecido na adolescência, com quem mantinha encontros semanais, já não se importava com as individuais fantasias sexuais do marido.
-- É a Síndrome da Espiagem. Imagine que ele se masturba espiando o banho da própria sobrinha ! – confessa indignada. E continua a delação:
-- Aos treze , quatorze anos, ele espiava as danças de salão, trepado numa bicicleta, noite inteira. Com sete anos de idade, creia, já freqüentava bordéis!
-- Impossível!
-- Seus pais eram donos de um posto de revenda de pães. Antes do amanhecer, diariamente, com um saco de pão nas costas, supria as boates da vizinhança. A distância até as "quebradas", como dizia ele, estreito e lamacento sob chuva, ou empoeirado com tempo bom, era vencido em pouco mais de um quarto de hora e seguia o leito sinuoso de um riacho de águas escuras, berçário de peixes e crustáceos , margeado, no lado mais alto, por uma capoeira onde predominavam os aguapês , pitaguarás, cafés-do-mato, e. no outro lado, por um mangue baixo, de solo arenoso . E foi numa manhã de chuva fina e fria de junho, ainda sob os estalidos provocados pelos brasidos teimosos dos restos das fogueiras festeiras de São João, da véspera, que o menino ADAM protagonizou a primeira cena da peça teatral de sua vida cotidiana.
Contou-me:
"Ainda no escuro do final de mais uma longa noite de inverno, sob uma chuva fina persistente, que molhava dos pés à cabeça, tremendo de frio, me aproximei da entrada principal do Casarão Oliva, um velho sobrado de madeira, edificado na década de 1920 , que abrigava a principal boate da região, pintada de verde escuro, rodeada por um amplo e bem cuidado jardim dominado pelo colorido primário dos lírios amarelos e das rosas vermelhas.
O desbotado guarda-chuvas guardava o saco:
-- O pão não pode molhar, Adam! – disse-lhe o pai antes de sair de casa.
"- Atchim! Resfriado pode. Ah! mas quando eu crescer prometo que... não importa. Agora, a tarefa é a entrega do pão; e seco, menino! Não importa, -- continua no devaneio --, hoje o Brasil vai ser campeão mesmo! Perder para os suecos pernas de paus? Duvido! A festa vai ... mas, o que é aquilo?!"
Plantei-me estático, paralisado. Meus pés, descalços , inchados por causa de uma frieira que teimava, grudaram no barro gelado que cobria o leito enlameado da estrada.
" um homem , nu, sai pela janela do sótão, agarra-se ao tronco do mamoeiro adjacente e desliza até o canteiro de marias-sem-vergonha; recolhe algumas peças de roupas e corre assustado por entre as roseiras, atravessando o imenso tabual da nascente do riacho, desaparecendo rapidamente no meio da vegetação do pé do morro.
Adiantei-me, poucos passos:
-- ei ...ei! uma mulher caída... será que ... está morta!?
-- Mas...é Maria, sim é Maria! - gritei desesperado, agachando-me, ao reconhecer o corpo que jazia estendido. Era ela que no fim do mês pagava a conta do pão.
Por sobre seu vestido preto, comprido até os pés, vi que sobressaia um elegante xale acizentado, manchado de sangue. Arrepiei-me. O cabelo, louro pintado, esvoaçado, misturava-se à relva orvalhada e quase escondia a arma utilizada: uma pistola. Pistola, de verdade?! Jamais havia sequer tocado numa arma daquelas.
Ajoelhado, encostei minha cabeça sobre seu peito e constatei que seu coração ainda batia. Fraco, mas batia. O suficiente para articular algumas palavras:
""— Os homens.,.. são todos iguais mesmo: caçadores, ...cretinos e ..cooovaaarrrdeeessss...""
Gritei . Bati outra vez ? Como bater com as mãos ocupadas? A mão esquerda segurava o guarda-chuvas; a outra, o saco do pão ! Arranje-se Adam! Chutei a parede com raiva: ninguém ! É sempre assim, nessas horas ninguém aparece. "...Atropelaram o coitado do João, no meio da tarde, à saída do estádio de futebol, em plena luz do dia, e ninguém viu nada. Cegos, surdos e mudos" pensou, lembrando da reclamação do pai ao padre, logo depois de uma missa dominical matutina.
Fui até os fundos da casa e pendurei o saco do pão no lugar de sempre: um prego fixado na soleira da janela da cozinha, ao lado da chaminé.
Voltei e constatei o corpo no mesmo lugar, do mesmo jeito. Perguntei-me: Será que está morta mesmo? Suicídio ou assassinato? E essa gente toda, onde está? Ninguém viu nada? Nem ouviram?
-- Socorro! Socorro!! – gritei novamente. Nada, ninguém.
O dia clareia...é tempo de voltar.
Antes, inocente, recolhi a pistola e cobri a pobre coitada, pelo menos sua cabeça, com o guarda-chuvas.
No portão, ainda voltei-me num último e desconfiado olhar: o corpo e o guarda-chuvas continuavam lá!
Saí correndo.

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